João Pereira

João Pereira

Advogado, escritor e atento observador da política

Postado em 19/04/2017 08:54

Resquício da fé no bolo do absurdo?

Os sonhos e seus mistérios fazem parte do mundo ordinário no qual tudo pode acontecer, o imaginável e o inimaginável. Glaucon, talvez por sugestão do entardecer quando a sós costuma fazer reflexão sobre a vida, sonhou que estava na sala de aula aguardando o professor Dellanina, titular da cadeira de filosofia. Ao entrar, foi direto para o quadro e escreveu duas palavras: caos e ressurreição. Dirige-se em seguida para a turma e diz que com os dois ingredientes eram destinados a um bolo para a confraternização do fim do ano letivo. Para que crescesse belo e apetitoso aos olhos, entregou o fermento chamado de tortura inquietante da imaginação infernal. Ao sair para apanhar as bebidas, ordena que iniciem os trabalhos.

 Glaucon, com a mão no queixo, abismado e incrédulo continuou sentado. Como se pode fazer bolo de uma abstração? O professor extrapolou os limites do exótico. Percebe o cenário de uma cozinha onde seus colegas se encontram. Vê que dois maceravam os ingredientes. Atingindo o ponto, começam a pô-lo na forma, processo que se repete á exaustão, vez que quando se repete, transforma-se numa espécie de gêiser fumegante, jogando pedaços para o ar. Abobalhados, correndo de um lado para o outro, queriam entender a causa do fenômeno. Cansados, desistem após chegarem à conclusão que seria impossível fazer o bolo pela incompatibilidade entre os dois componentes que naturalmente se repelem.

 O professor não retornou e Glaucon, após a desistência dos colegas que foram entregues ao eterno castigo de Sísifo, acordou perturbado. Como explicar tamanho absurdo? O sonho permanecia nos mínimos detalhes em sua memória. Esperou que o dia amanhecesse. Era um sábio. Encontrava-se em sua casa de praia. Tomou café com o palpável, visível e gostoso bolo de macaxeira. Às dez e meia, sol abrasador, estava na hora de sentar-se à mesinha para apreciar a grandeza e incansável beleza do mar. Estava a sós naquele momento, apenas na companhia de uma geladíssima. Tomou a primeira com indisfarçável prazer do autêntico apreciador. Na segunda, com o olhar perdido na observação das ondas na sua incessante luta contra a terra, o sonho não saia de sua cabeça. Começou a perguntar-se sobre o seu significado. Como entender tamanha esquisitice de se propor a feitura de um bolo com os ingredientes do caos e da ressurreição? Por que o indispensável fermento denominado “tortura inquietante da razão infernal? ”Provavelmente quisesse significar a agonia, a aflição mental do homem para desvendar os mistérios e a desagradável sensação de derrota. Por que, ao ser levado para o forno o bolo se transformava em algo parecido com um gêiser, desmanchando-se e jogando pedaços para o ar? Provavelmente quisesse revelar que se repelem pela incompatibilidade entre o caos e a ressurreição.

 Bem, continuou a refletir, admitindo que se tudo surgiu no meio do nada, a ressurreição, vida que retorna com a fé de sua eternidade, não suporta a ideia de voltar ao nada. Inútil inconformismo. Acontece que na condição de opostos os dois conceitos, naturalmente que estão e estarão sempre se encontrando enquanto vida existir. Nesse sentido, há em nosso mundo interior, como herança, uma inesperada e inexplicável nostalgia do caos, como disse Albert Camus, que precedeu a criação ordenada do universo. Por outro lado, há de se entender, a vida em seu transcurso não se dá em linha reta, mas em círculo como acreditava Pitágoras e posteriormente Schopenhauer em sua teoria do eterno retorno.

 De outro lado, sempre ensimesmado, por mais que queira a fé na pureza de sua definição exposta por São Francisco de Assis, hostilizando a razão para os que querem espalhar a mensagem de Cristo e a comunhão direta com o divino, não dá, racionalmente, como acreditar na ressurreição. Não bastasse a constatação de que a vida eternamente se alterna com a morte, convém atentar para o mundo antigo e a realidade atual. Quando João Batista já alterava o homem para os últimos dias que se aproximavam, era até admissível acreditar, com a mentalidade da época e com uma população rarefeita, em ressurreição e Juízo Final. Era resultado de uma pobre mentalidade da época, totalmente a ela restrita, sem uma mínima visão do futuro a longo prazo.

 Basta! Bendito bolo do absurdo. Assim encerrou Glaucon suas considerações, permitindo-me esse curioso e inesperado passeio pelo mundo do abstrato. Sempre fui uma pessoa de fé, vendo nela uma mistura de enigmático com uma tocante e encantadora inocência de alcançar uma hipotética graça celestial. Será que o dispara-te desse sonho do bolo absurdo não revela um resquício do inconsciente de uma luta que persiste entre o passado de fé e a vitória do agnosticismo que em mim se firmou?
 

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