João Pereira

João Pereira

Advogado, escritor e atento observador da política

Postado em 24/03/2017 17:42

Considerações de um delator premiado

Ilustração
Considerações de um delator premiado

 Como estou a sentir-me? Será que o meu gesto poderá posicionar-me como um homem de coragem, como um patriota e gari ora preocupado com a limpeza moral do Brasil, ou simplesmente como um covarde delinquente? Apesar do que possam pensar, impossível deixar de refletir no curso de minhas reflexões as consequências dos meus atos e reflexos na minha reputação perante a opinião pública. Vivo, depois de enquadrado como corrupto e delator, uma terrível dúvida e inquietação existencial. Será que a minha delação, com as demais, estará fincando uma bandeira histórica de combate sem trégua a corrupção para fazer do Brasil um país respeitável? Terei condição com a minha confissão, o direito de sentir-me aliviado e a sensação de uma consciência tranquila como se tivesse remido todos os meus pecados? Será que perdida minha credibilidade do passado terei condições de recuperá-la ou, uma vez perdida, perdida está para sempre?

Se fui corruptor é porque me vi cercado por uma corja de políticos corruptos ávidos por trocas de favores mútuos. Levando-se em conta a fragilidade do homem, somente poucos podem resistir à tentação do lucro rápido e fácil. Infelizmente, não fiz parte dessa ínfima exceção em termos de Brasil. Um Brasil de portas escancaradas para a corrupção, vez que na condição histórica de um país sui generis e surrealista no qual quem tem a obrigação de zelar pelo bem público e exercer com probidade suas funções, as inverte para buscar o interesse próprio. Quem resiste a tantas facilidades? Sou assim, um produto do meio, e como tal, independente da delação, não seria aceitável uma redução da minha pena? Que culpa tenho se sou uma vítima formada na permissividade das condições que estimulam a gatunagem?

De vez em quando, entre amigos a conversar sobre as coisas do Brasil, perguntávamos qual, entre os três poderes, era o mais corrupto. Sem unanimidade a respeito, fiquei com o legislativo por meio do qual eram tramadas as barganhas. Percebo hoje como é deveres lamentável que o cidadão brasileiro, cercado por generalizados desmandos nas esferas da administração pública, não possa encontrar, no meio de seus escombros, uma réstia de otimismo e esperança. Não podemos, eternamente, permanecer nessa monótona lamentação sobre um Brasil sem salvação por não dispor e continuar arredio às boas instituições. Felizmente, com as investigações da lava-jato, vislumbramos, a propósito, um país que começa a limpar e arrumar suas mazelas, fazendo uma histórica demarcação entre o Brasil de ontem, hoje e o que será amanhã, seguramente bem melhor.

Mas, apesar desse trabalho de depuração do país, uma dúvida tem me assaltado a respeito da pureza moral da delação premiada. Podemos compará-la a uma água limpa e cristalina para o fim a que se propõe? Parece-me que ela é poluída com a água de banheira em uso, isto é, quanto mais limpa, mais se suja. A delação é imoral e o delator, no mesmo nível, não passa de um covarde. Não nego, em mim, essa vergonhosa condição. Afinal de contas, não fui coagido a fazê-la, não fui suplicado e muito menos corria o risco de morrer. A diminuição da pena não a justifica, a não ser a quem não tem o mínimo de caráter e honradez. A verdade é que a delação premiada, amparada na lei do menor esforço, não passa de uma perversão moral, legalizada para suprir a preguiça e a deficiência de inteligência investigativa para a elucidação dos delitos.

Que posso fazer? Resta-me apenas o arrependimento e o íntimo conforto de uma confissão que me traga a paz de espírito. Estigmatizado de corrupto, já não me pesa suportar, como acréscimo de minha biografia, a alcunha de vil alcagueta e covarde delator.
 

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