21 Dezembro 2019 - 17:03

Os impactos da transposição do São Francisco nas comunidades rurais e indígenas

A transposição das águas do Rio São Francisco é a maior obra de infraestrutura do Brasil, mas depois de 12 anos de trabalho, sendo 7 de atraso, a esperança de abastecimento garantido para mais de 2 milhões de pessoas deixou cicatrizes na caatinga e em comunidades rurais e territórios indígenas. Ao todo, 848 famílias foram reassentadas e realocadas em 18 novas comunidades. Para muitos, a readaptação não foi concluída.

Nesta edição do Desafio Natureza, o G1 aborda os impactos na região de influência do São Francisco, que ao todo tem uma extensão de 2.800 km e abrange diferentes ecossistemas e comunidades.

Com mais de 90% da transposição concluída, impactos ambientais no Rio São Francisco ainda são incertos

Em Sertânia (PE), lavradoras como Rosilene Pinheiro de Sousa e Edilma Pinheiro dos Santos contam que a perda da ligação com a terra onde nasceram apagou a esperança de ver de perto os benefícios da transposição. Já os relatos do povo indígena Pipipã em Floresta (PE) são de lamento pelo corte de árvores e ocupação dos territórios para os quais eles não tinham conseguido obter a demarcação.

Nas reclamações dos afetados e na constatação de pesquisadores aparecem reclamações diversas sobre os efeitos sociais e culturais da transposição. Os principais são rompimento com a identidade sertaneja, escassez de água para a agricultura e animais, perda da terra, impacto psicológico e depressão, desmatamento de árvores sagradas para indígenas e até o abandono de filhos por trabalhadores das obras.

"É preciso rever a lógica desenvolvimentista dos megaprojetos que atropelam vidas, desterram sujeitos e violentam tradições", afirma Clarissa Marques , professora da Universidade de Pernambuco e integrante do Programa TransVERgente, que há 1 ano e meio acompanha moradores de Sertânia, uma das áreas afetadas, a 315 km de Recife.

“A identidade desta população é o trabalho, o mexer com a terra, lidar com animais. A paisagem em si também é algo que forma a identidade deles” afirma André Monteiro, pesquisador da área de Saúde Coletiva da Fiocruz, integrante do Programa TransVergente, e diretor do documentário "Invisíveis", lançado em 2017 com depoimentos de moradores que relataram como a obra afetou a vida deles.

Sertânia e o impacto na vida rural

Atualmente, a água do São Francisco até passa perto de onde a família de Rosilene Pinheiro de Sousa vive em Sertânia, mas está atrás do canal de concreto e não há acesso, como teria em um rio natural, com margens.

“Passaram aqui dizendo que a obra iria chegar, que seria muito bom. Foi uma coisa de muita alegria, mas que passou a ser de tristeza. Teve desmatamento, a área devastada é muito grande. Tivemos que nos mudar. Tínhamos um açude, era a praia do sertão da gente, mas a água secou” – Rosilene Pinheiro de Sousa, moradora de Sertânia.

A vizinha Edilma Pinheiro dos Santos sofre com o mesmo dilema, agravado pelo relato da fuga de animais e do impacto das mudanças na história do pai.

“Tinha um terreno comprido, onde o canal passou ao meio. A água do canal passa dentro da nossa terra, mas não temos acesso. Usamos a água do poço, e para beber, a gente compra” – Edilma Pinheiro dos Santos , moradora de Sertânia
Segundo Edilma, os trabalhadores da obra da transposição abriram a cerca, e não fecharam, o que levou à fuga dos animais. Ela diz que espera uma indenização há mais de 8 anos.

“A criação que a gente tinha, desapareceu toda. De 210 animais, 15 foram recuperados”, afirma.

O pai de Edilma morreu há quase um ano. Para ela, a morte foi acelerada pela obra da transposição. “A gente acaba de uma certa forma acreditando que teve a ver com a obra. Ele nasceu e cresceu aqui, no terreno dele, o terreninho dele era tudo. Quando foi dada esta determinação de passar ali de todo jeito, para ele foi como se tivesse expulsado ele da terra”, afirma.

“Ele teve um aperreio muito grande quando viu que não recuperava mais a criação, ficou triste quando viu que não teria o acerto [indenização], e foi ficando no canto dele. Só quem viu antes e vê agora para entender como ficou, como foi danificado o terreno da gente, no qual ele criou seis filhos, tudo com renda própria”, conta.

O pesquisador André Monteiro também afirma que a chegada dos trabalhadores à obra de transposição trouxe questões como o estímulo à prostituição infantil. Por outro lado, alguns relacionamentos consentidos também ocorreram nesta época. Há mulheres que relatam terem ficado grávidas destas relações e, depois, foram abandonadas pelos pais das crianças quando a obra foi concluída no trecho em que moravam.

"Cada trecho de transposição chega a reunir de 11 a 12 mil trabalhadores. O grande impacto social é a questão da exploração sexual infantil, com meninas de até 14 anos. Houve também o abandono de paternidade, afetivo e emocional, que ocorreu tanto em casos de adolescentes quanto em mulheres adultas" – André Monteiro, pesquisador
Local onde antes havia um riacho, e que secou devido ao impacto da obra de transposição do Rio São Francisco — Foto: Arquivo PessoalLocal onde antes havia um riacho, e que secou devido ao impacto da obra de transposição do Rio São Francisco — Foto: Arquivo Pessoal
Local onde antes havia um riacho, e que secou devido ao impacto da obra de transposição do 

Indígenas e espaço sagrados

O povo indígena Pipipã ocupa um território no município de Floresta, em Pernambuco, cidade onde começa o canal de transposição do eixo leste do Rio São Francisco. A terra está identificada, mas o processo de demarcação ainda não foi concluído.

Para os Pipipã, a maior perda se deu no desmatamento de árvores consideradas sagradas. Em depoimento a André Monteiro Costa, o caboclo Pipipã da aldeia Caraíbas, no município de Floresta (PE), conta que foram derrubadas árvores como imburana, baraúna, pau-ferro, caatinga branca, mororó. Mesmo que as árvores cresçam em outros locais, a perda de cada uma delas é sentida.

De acordo com o Instituto Socioambiental (ISA), a cosmologia do povo Pipipã está ligada aos "espaços sagrados" ocupados por essas árvores.

“Para o povo indígena e as comunidades quilombolas – são 5 no eixo norte –, essa dimensão do simbólico é talvez a mais forte, porque tem a cosmologia das crenças, dos encantados [espíritos sagrados], que estão em outra dimensão, e o canal veio, cortou e desmatou”, explica Monteiro.
Segundo o pesquisador, as máquinas da transposição entraram nos territórios indígenas sem que todos fossem avisados. “Eles ouviam só o barulho das máquinas e das árvores caindo, muitos relatam cenário de apocalipse, como se fosse uma invasão de outro mundo”, afirma

por Portal G1

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