Oh! Quarta-Feira Ingrata!
Nesse carnaval lembrei com saudade de muitos que já se foram. Quando se chega à maturidade, lembrar é um exercício freqüente e necessário.
Entre minhas lembranças carnavalescas, fiz um passeio pela cidade. Andei pela Avenida Floriano Peixoto e revi os adereços carnavalescos feitos com esmero pelo meu pai, José Vécio. Baianas a Carmem Miranda, arlequins, notas musicais, sombrinhas de frevo, máscaras, passistas. Eram grandes e muito coloridas, demarcando o Quartel General do Frevo.
Ouvi a orquestra iniciar os primeiros acordes do frevo Vassourinhas e os foliões iniciarem suas acrobacias carnavalescas e subi à varanda da Imperial Sociedade Filarmônica 7 de Setembro que funcionava no Teatro.
Vi o “Zé Mulé” exibir suas maravilhosas fantasias no palanque montado em frente às Lojas Paulistas e sambei entre as alas das escolas de samba do Carrapicho e ao som das Batucadas Milionários do Samba e Unidos do Bairro.
De repente, me vi diante do brilho de um folião especial. De casaca e cartola, ele subia a Quitanda e descia a Avenida reverenciando os penedenses que assistiam extasiados ao desfile da Escola de Samba Bloco da Alegria.
Era Hildo Machado, o nosso querido e odiado HM, grande observador de gente e jornalista de palavra afiada oriundo do Sovaco da Ovelha, lá do Barro Vermelho. A Escola de Samba Bloco da Alegria era uma de suas paixões.
Apesar da alegria carnavalesca e da ironia que usava em seus textos nascidos no famoso Observatório, Hildo Machado tinha uma certa tristeza, uma sombra que pairava sobre o mais espetacular dos seus sorrisos.
Nesse carnaval, revirei meus papéis e encontrei ao menos uma resposta. Um poema, datilografado na sua velha Olivetti, ainda com correção de seu próprio punho, e que me foi entregue na redação do jornal Tribuna Penedenses depois de uma daquelas conversas em que eu, ele e Evaldo Araújo falávamos sobre a tristeza pelas coisas que a gente não podia mudar.
A você HM, minha lembrança com gratidão pelos ensinamentos, minha saudade e minha homenagem pós carnaval.
Poema longo de um longo declive
Hildo Machado (HM_
Manhã chuvosa. Melancólica. Silenciosa. Fria.
Ninguém andando na rua lá embaixo.
Nem carroça, nem caminhão, nem bicicleta, nem Del Rey.
Nem mesmo aquela mulher
Transeunte habitual,
Magra,
Suja
Saia e blusa rasgadas.
Peitos pendurados e moles no colo ferido,
Restos de uma beleza obscurecida
Pelas mãos insondáveis da vida insolente...
E aquela mulher é, ainda, gente...
Mendiga na claridade branca de todas as manhãs,
Na lua escura de todas as noites,
Na alegria alheia de todas as tardes.
Gente que, pela manha é à noite,
Freqüenta a rua lá embaixo,
Como pedinte,
Trazendo a lata de Nescau vazia.
Na outra mão, segura um saco de papel grosso,
Cheio de restos de comida dos outros,
Para o seu almoço do dia.
Em qualquer porta, pede um pouco de água.
Senta no degrau da porta do Convento
E come, almoça,
Depois bebe a água da lata de Nescau.
Mas, aquela mulher tem nome bonito,
Nobre,
Social,
Sonoro como a música de Mozart e Gonzaguinha,
Embora identifique uma mulher em decadência inexorável,
Na miséria,
Se defrontando com a Morte, para voltar ao Nada,
Estuprada pela sociedade onde o poeta transita...
Aquela mulher é Elisete!
Elisete!...Elisete!...
Elisete pisou na mocidade nascente,
Pisou no chão do beco da vida começando,
Do poeta que ora exalta e chora sua desgraça,
Sua decadência,
Sua tristeza,
Sua miséria...
Elisete foi prostituta no Camartelo,
Freqüentou a casa da Quixaba,
Da negra e saudosa Quixaba...
Tinha nos olhos uma luz de alvorada.
E tinha nas mãos o adeus à infância mutilada.
Morou na casa do sexo e do amor dos homens safados...
Foi na casa de Quixaba que aquele rapazinho,
Filho de Dona Domenícia, conheceu Elisete.
Conheceu e amou Elisete...
Depois foi para longe,
Para a cidade grande,
Lembrando e lembrando Elisete.
Os anos passaram. Muitos anos.
Voltou.
Só,
Sofrido,
E ateu.
Reencontrou Elisete,
Hoje pedaço de gente,
Resto de mulher que foi de muitos homens...
Elisete!...Elisete!...
Ela olhou para cima.
Desci e fui falar com ela,
Perto, já, do Convento.
Elisete não lembra mais de nada,
Não sabe mais de nada,
Perdeu a memória,
Não tem mais passado,
História...
Beijei o rosto de Elisete,
Fedorento,
Sujo, terrivelmente emagrecido.
_ o que é isso, seu peste, me respeite!...
E foi andando,
Deitou-se no degrau da porta do Convento.
Deitou-se e dormiu...
Horas depois, os frades chamaram a ambulância.
Elisete tinha se acabado.
Estava morta!
Levaram Elisete embrulhada em panos de sacos,
Para debaixo da terra,
Sem documentos e sem orações,
Sem pêsames e sem lágrimas.
Vai ser devorada por outros animais, outros bichos...
Elisete!... Elisete!..., meu amor!
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