O Casamento Real e a" Insustentável Pobreza do Ser"
Os cães ladram enquanto a carruagem passa. Esse ditado me veio à mente ao ver uma reportagem sobre as pessoas que, com alguns dias de antecedência, já se encontravam acampadas numa via privilegiada de Londres para poder garantir lugar que avistasse a carruagem real dos nubentes Willian e Kate. Não posso deixar de registrar que isso me causou perplexidade, a despeito de vivenciarmos uma realidade onde as futilidades estão na ordem do dia, movendo toda uma indústria de entretenimento nocivo. Nesse sentido, quando o “BBB” ou “A Fazenda” conseguem fabricar manchetes de jornais, revistas e sítios importantes da internet; quando torcedores de times de futebol procuram se auto-afirmar em brigas pelas ruas ou pelas arquibancadas; quando a Xuxa tem status de rainha, Luan Santana é escolhido para entoar o Hino Nacional na Fórmula Indy, em São Paulo, quando o bizarro grupo Restart ganha vários prêmios musicais da MTV, por que me impressionar com a alienação das pessoas que acordaram cedo para assistir ao tal casamento real?
Definitivamente, acho que por medo; medo de constatar que a realidade já é demais para muita gente que não passa fome e nem vive prostrado numa cama. Ora, como é que algo tão fora de moda, tão destoante das ondas revolucionárias que assolaram a Modernidade e a Idade Contemporânea consegue despertar o interesse das pessoas? Além de fora de moda, cá pra nós, a família real britânica não tem graça nenhuma. São feiosos, distantes, frios e não parecem felizes. Em troca de morarem num castelo e terem títulos que pouquíssimas pessoas na Terra podem ter, deixam de ser gente e passam a ser uma instituição que dá lucro e glamour ao “reino” (é só atentar para os dividendos decorrentes de direitos de transmissão do casamento pela TV). Serão eles felizes com tantas limitações que lhes são impostas? Tenho minhas dúvidas, como a maioria dos leitores também tem.
Kate, para se tornar princesa, como todos já viram em jornais de televisão e na internet, terá de cumprir algumas exigências que vão além do razoável e, que do ponto de vista de utilidade, soa como um zero à esquerda: não poderá exercer uma profissão, não poderá carregar bolsa (algo impensável no universo feminino), não poderá brincar de banco imobiliário, não poderá comer mariscos, não poderá terminar sua refeição caso a rainha termine primeiro que ela, não poderá andar (em ocasiões oficiais) ao lado do marido, mas alguns passos atrás dele, enfim, uma miríade de tolices que nos fazem indagar se tudo isso não foi inspirado numa história da Carochinha. Mas, o que é que eu tenho a ver com isso? Nada. Absolutamente, nada.
E, por isso, mesmo não assisti ao tal casamento e creio que nenhum brasileiro tinha motivo relevante para não agir da mesma forma, portanto, volto a insistir na pergunta: por que o fascínio dos pobres de espírito por este evento, a ponto de acordarem cedinho a fim de não perder um só detalhe? Vou ousar e tentar responder: o inconsciente das pessoas é impregnado de imagens e histórias que lhes foram contadas na infância (castelos, princesas, duques, condes, cavaleiros, fadas, etc.). O que a mídia faz, ao usar a família real britânica, é mostrar às pessoas que esse mundo existe de verdade e é levado a sério tanto pelos súditos como pelo poder público, dando-lhe um ar de sanidade. Nesse sentido, se uma cerimônia de casamento mexe com o imaginário das pessoas, máxime das mulheres, o que dizer, então, da “sorte” de uma plebéia que teve a oportunidade de se unir, em matrimônio, a um príncipe que, de fato, existe?
Infelizmente, a realidade, ao que parece, está sem graça demais para muitas pessoas que não sabem o que é fome, miséria, guerra e outras mazelas, por isso, comportam-se como nômades de si mesmos ao curtir a vida alheia que está sendo contada num mundo à parte, mas que é “real”. No vazio e na pobreza espiritual em que se encontram, buscam em outras vidas, sejam reais ou até mesmo as encenadas em filmes e novelas, aplacar uma incompletude que não pode ser sarada pela apreciação da vida privada de outrem, ainda que pessoas públicas, já que o seu vazio estará sempre a sua espera quando voltar do passeio embriagante e que se esvanece em tão pouco tempo.
Realmente, a fuga da realidade é um subterfúgio dos miseráveis, dos desafortunados da sorte e dos depressivos, mas, também, é o subterfúgio daqueles que já não suportam a si mesmos. Enquanto naqueles há uma força centrípeta (a hostilidade do meio vai de encontro a suas vidas), nestes, há uma força centrífuga, é o vácuo espiritual que vai de encontro ao meio e, ali, também nada encontra, senão, na vida do próximo, uma espécie de mendicância existencial da qual não têm a menor consciência. É lastimável e é impressionante.
Não imaginava isso, mas a humanidade ainda consegue me assustar. Parodiando Milan Kundera, eis “a insustentável pobreza do ser”.
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