João Pereira Junior

João Pereira Junior

Advogado, Professor de Direito e Membro da Academia Penedense de Letras

Postado em 30/10/2010 10:12

Divagações sobre música e poesia

Ouvi, certa vez, um amigo dizer que o Brasil era um País carente de poetas, pelo menos “poeta” no sentido purista, ou seja, aquele que produz e confecciona livros de poesia sem qualquer ligação com a música. Esse purismo, por ele entendido, deu vazão a uma tese que expressou sem qualquer ressalva: “a poesia migrou para a MPB”. Evidentemente que tal afirmativa, apesar de tão categórica, carece de ser representativa da realidade.

Poesia e música são artes cujos fundamentos são distintos e, portanto, uma sobrevive sem a participação da outra. Enquanto que a gênese da música se consubstancia na disposição coerente de sons e silêncio organizados ao longo do tempo, a poesia surge da palavra falada ou escrita, desde que revestida de arte e com o poder de transcender o seu significado literal. Isso não quer dizer, entretanto, que ambas as artes não intercambiem entre si. De fato, a música ganha um interessante acessório quando faz uso da palavra, acrescentando a chamada “letra” ao corpo musical, da mesma forma que a poesia também se conforma à música quando se verifica nos versos a presença de ritmo e de rima. Nesse sentido, para a poesia, a música vem como um acessório; já para a música, a letra é quem funciona como coadjuvante. Ora, o acessório não pode ser mais importante que o principal, é um princípio lógico, logo, atribuir uma migração da poesia brasileira para MPB, é uma atitude reducionista, porquanto faz da poesia um adorno musical.

Na verdade, o raciocínio deve ser feito de outra forma: se a MPB tem buscado se conjugar a boas letras, isso é fruto da prodigalidade de poetas que há neste Brasil. O problema da falta de consumo de livros de poesia está relacionado à lei do menor esforço, cuja eficácia se acentuou bastante com o surgimento diário de inovações tecnológicas. Ou seja, o entretenimento da sociedade do séc. XXI acompanha as facilidades que a tecnologia proporciona, tornando nossas mentes viciadas a experimentar a catarse sem qualquer participação do indivíduo no sentido de projetar suas próprias imagens e criar mundos a partir do seu próprio arcabouço psicológico. A televisão e o computador é quem criam este atalho atrofiante, trazendo imagens prontas, linguagem coloquial e, às vezes, vulgar. Por outro lado, os livros, que não se revelam senão pela decifração (entenda-se leitura), largam em extrema desvantagem, sendo preteridos e, portanto, esquecidos nas lojas especializadas. Na verdade, as prateleiras das livrarias sempre têm livros de poesia, cujos autores, em sua maioria, publicam (muito mais) para aplacar um anseio pessoal sem qualquer pretensão de retorno financeiro.

O imbroglio instalado é que estamos na cultura do “fast food” e o livro não faz parte desta dinâmica. Assim, por esta lógica bisonha, ler, definitivamente, se tornou algo chato, cansativo, exigente de um trabalho mental a cada página e que só ao final de todas elas é que o leitor se deparará com o que o autor, finalmente, quis dizer. É como se o livro não nos conquistasse a cada página, a cada verso; ao contrário, encaram a última página como o único objetivo do livro e as páginas antecedentes como um obstáculo que não pode ser afastado. Infelizmente, se alguém não recitar ou cantar a poesia, parcos leitores a buscarão nos livros onde foram grafadas para que tenhamos, nós mesmos, a nossa própria leitura do texto. Em suma, o cidadão contemporâneo preferirá ouvir uma boa música de Chico Buarque, onde ele encontrará uma linguagem poética embutida numa melodia, do que ler um livro de poesia do Luciano Rocha ou de Francisco Araújo.

Certamente, quanto mais ignorante é um povo, mais invisíveis são os livros, e onde não há livros, somente resta a música que, por sua versatilidade, pode abrigar em seu bojo desde a arte mais nobre, até os eflúvios dos esgotos mais asquerosos.

A música, de fato, dentre as artes, é a que, talvez, mais rapidamente cause reações no ser humano, sem falar que é um veículo eficiente de memorização, todavia, nos tempos atuais de tanta alienação, tem sido utilizada tanto como repositório de poesia, como embalagem de grosserias que revelam o lado rasteiro por que se enveredam certos “gênios” freqüentadores de determinadas gravadoras e cujo estandarte enaltecem palavras como “rapariga”, “cabaré”, “birita”, dentre outras ainda piores que expressam promiscuidade e degenerescência. Da mesma forma que ouvimos um verso lapidar de Silvio Caldas em sua imortal “Chão de Estrelas” que canta: “A porta do barraco era sem trinco, mas a lua furando nosso zinco salpicava de estrelas nosso chão”, ouvimos fazer um estrondoso sucesso uma brutalidade cantada que rosna: “fazer valer, fazer valer, fazer valer na cama, tem que fazer gostoso pro gozo virar lama” (Aviões do Forró). É lamentável.

Por fim, diante de uma sociedade tão refratária à leitura, fico a pensar se a poesia, realmente, não é coisa de intelectual mesmo, pois para ser usada pelo mundo e pelo submundo dos homens, sendo, portanto, um “degenerômetro” social, somente a música possui tal polivalência, porquanto ela dirá quem está com a mão na cítara: se Euterpe, ou se Baco.

Triste fardo gongórico e inexorável carrega a música quando acrescida de uma letra: rutilar nas cores diáfanas da boa poesia “salpicada de estrelas” ou esmaecer-se em trevas de ignorância, de “lama e de nenhum gozo”. É, de fato, flertar com o nobre e com o reles, com a arte e com a miséria.

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  • Jean Lenzi Caro Joao, Voce esta coberto de razao, sensacional esse seu texto.
  • João Pereira Júnior Obrigado, Lenzi. E parabéns para vc tb, pois, pelo que eu já li dos seus textos está bem claro que vc faz parte dos amantes dos livros, afinal, só escreve bem quem lê.