João Pereira

João Pereira

Advogado, escritor e atento observador da política

Postado em 03/03/2017 16:50

Não conseguiu usufruir a ociosidade

Ilustração
Não conseguiu usufruir a ociosidade

Irineu tornou-se um prisioneiro da rotina. Nunca conseguiu atinar para a diversidade em busca de novos horizontes e preferências que enriquecem a vida, tornando-a mais aprazível e suportável. Era um autêntico representante do monótono samba de uma nota só, condição bem pior do que o samba do crioulo doido, divertido e alegre. Não sofria conflitos de qualquer natureza, quer espiritual ou carência de bens materiais. Gostava da sua profissão, tendo-a transformado em seu primeiro e único amor.

Era empregado de uma grande revendedora de automóveis. Como qualquer trabalhador citadino, levantava cedo, tomava banho, barbeava-se e trocava de roupa, não de uma maneira simples, esportiva, mas de terno e gravata. Era uma exigência formal e também estratégica em razão de seus contatos com uma clientela que se distinguia pelo poder aquisitivo. Afinal de contas, nada se perde com a boa aparência, ganha-se, principalmente quando somada à boa comunicação, simpatia e o poder de persuasão do vendedor. Irineu tinha todos esses atributos, fato que o tornou o melhor entre seus colegas, fazendo jus a elogios e gratificações.

Casado, pai de três filhos, um homem e duas mulheres, sua esposa, comum como tantas outras, de pouca vaidade e exigências, desconhecia-se grandes atritos entre ambos, suportando-se muito bem dentro de suas mediocridades. A preocupação número um do casal era a educação dos filhos, que pretendia vê-los formados em curso superior, fazer parte da nata intelectual e gozar de um alto padrão de vida. Mesmo não sendo um sovina ou avarento, raramente dispunha-se a gastar em farras, poucas em sua vida, ou em festividades em geral. Deixando de desfrutar a vida, achava mais prudente economizar para o futuro incerto que cada vez mais se aproxima da morte certa. Como qualquer um de nós, torcia que chegasse o fim de semana, não propriamente para usufrui-la em uma atividade prazerosa, mas tão-só para repor as energias e voltar revigorado para a rotina do trabalho.

Irineu, sem dúvida, era a mais acabada obra de um homem condenado pelo cruel destino a um miserável pobreza de espírito. Foi um homicida da imaginação e o mais vil dos escravos, aquele que fabrica as próprias algemas. Apesar dessas limitações de seu horizonte capaz de enxergar a vida na sua multiplicidade de formas para usufrui-la, desejava, incapaz de avaliar as consequências, a aposentadoria, acontecida aos cinquenta e nove anos de idade após exigidas contribuições previdenciárias.

E agora, Irineu, o que fazer da aposentadoria, de seu precioso saldo da vida que lhe resta? Certamente, na sua automatizada maneira de viver, nunca se deu ao trabalho de perguntar, achando que aposentadoria, enxergada e vivida pelo grosso rebanho de aposentados, era não ter compromissos e passar os dias sem nada fazer. Comer e encher a barriga como um animal é o mais importante. Essa regra não se aplica a todos, como aconteceu com o nosso Irineu, mesmo com suas limitações.

Abreviando, como iria entender o Irineu que saber usufruir o ócio é um privilégio para poucos? Desconhecendo qualquer outra atividade, especialmente de natureza artística, era incapaz de apreciar as belezas da natureza ou deleitar-se ao ouvir uma boa música. Tendo levado uma vida desenxabida, tornou-se mais insípida na ociosidade originando uma gradativa e fatal depressão. Um autêntico robô, sem sensibilidade e imaginação, carência que resume a essência da vida humana, findou por condena-lo à morte.
 

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