João Pereira

João Pereira

Advogado, escritor e atento observador da política

Postado em 12/02/2011 18:32

Julgamento pelo Tribunal do Júri

É praticamente impossível, como espectadores em um Tribunal do Júri, impedir que o nosso raciocínio mergulhe num emaranhado de indagações sobre a condição humana. Que deixe de entender e perceber nesta imprevisibilidade, nesta eterna interrogação chamada homem, o escuro túnel do âmago do seu ser onde se debatem em perene batalha os sentimentos, pensamentos e emoções que quase sempre desaguam num rio de incertezas. Custa-nos acreditar que a mais excelsa criatura distinguida pelo criador, este mistério ambulante desconhecido de si mesmo, verdadeiro caldeirão de antagonismos, de complexas e absurdas contradições, comporte dentro de si, simultaneamente, o santo e o demônio; a guerra e a paz; a sanidade e a loucura; a bondade e a maldade; a solidariedade e o indiferentismo; o amor e o ódio; enfim, a afabilidade e a ternura mesclada com o sentimento de fera calculista, fria, cruel e ensandecida. É deveras surpreendente que possa comportar toda essa amalgama de elementos tão díspares e aparentemente incompatíveis. Essa é, no entanto, a natureza humana, o homem radiografado dentro da sua nudez natural, não por uma escolha própria, mas por determinação do Criador. Certamente, todos nós, não obstante nos distingamos por certas virtudes e defeitos que se sobressaem, temos dentro de nós, em diferentes graus, o santo e o demônio.

Ora, se toda essa complexidade de grandeza e degradação, revela o homem na sua plenitude, não seria irracional se perguntássemos se seria justo responsabilizá-lo e condená-lo por uma natureza às vezes incontrolável e totalmente estranha à sua livre escolha. Naturalmente que perde o sentido tal indagação vez que o homem, possuindo o entendimento, é capaz, teoricamente, de exercer o livre arbítrio. Também poderíamos perguntar se existe o livre arbítrio ou se somos escravos do determinismo. Ninguém poderá responder-nos a essa dúvida de ordem transcendental, que comporta considerações de ordem filosófica e teológica. Por outro lado, mesmo dentro das limitações do homem, causa-nos perplexidade, dada a sua inteligência e capacidade de discernimento, o fato de não ser capaz, muitas vezes, de conter seus impulsos maléficos e destrutivos. Por que?

Segundo acreditam alguns cientistas, o homem é na realidade a superposição de três cérebros. O primeiro é a herança do cérebro dos répteis e comanda a fuga, o ataque e o impulso sexual. O segundo é o cérebro do mamífero que comanda todos os fenômenos afetivos. O terceiro cérebro é o neocórtex que se desenvolveu de uma maneira extraordinária no homo sapiens e que é sede de todas as operações lógicas e das associações de idéias. Estes três cérebros não são comandados pelo superior, nem o reptiliano é comandado pelo cérebro do mamífero. O que ocorre é uma contaminação das ordens dadas por um ao outro. O fracasso, em último caso, resulta do neocórtex em não controlar os dois cérebros inferiores. O que parece ser verdade, pois muitas vezes o nosso cérebro superior formula justificações que pertencem ao domínio dos desejos, impulsos e interesses.

O que é fácil concluirmos é que o mal não é apenas um mal em si mesmo. Há um lado positivo. Seria possível a busca da perfeição sem a existência do mal? E se o mal fosse suprimido, o que aconteceria ao homem? Estaria praticamente com um pé no paraíso, que é o lugar dos idiotas. Temos de convir que o mundo marcha pelo antagonismo de suas leis, assim como as contradições e os conflitos internos no homem são a essência da própria vida, podendo levá-lo tanto às alturas como ao abismo. Se existisse um controle forte do neocórtex sobre a nossa afetividade e nossos estados primários, que resultaria da nossa criatividade? É preciso reconhecermos que a causa da infelicidade do homem é também a causa da sua inteligência e de seu gênio.

Há quem afirme, o que é uma verdade, que seria uma loucura pretender suprimir os erros e desordens da sociedade. Além de uma loucura, seria uma forma de regredir. É necessário que se procure manter um meio termo, pois, se formos muito organizados estaremos condenados à rigidez mecânica; ao contrário, se muito desorganizados, nos decomporemos. Eis porque o homem, sobressaindo-se dos demais animais, vive socialmente organizado dentro de um ordenamento jurídico e costumes estabelecidos pelo pacto social, impondo-lhe direitos e obrigações. Sem essas normas repressivas que prometem e impõem castigo aos transgressores, voltaríamos ao tribalismo e o racional, prostrado e vencido, seria ofuscado pela supremacia dos instintos bestiais.

No que tange ao Tribunal do Júri, diríamos que inatacável quanto à sua forma e finalidade. Entre nós, no entanto, face as diferenças do nível cultural e intelectual de inúmeras comarcas interioranas, não acreditamos que o mesmo preencha a contento as suas funções, tendo em vista a citada qualificação dos que compõem o Conselho de Sentença. É uma deficiência que temos de suportar, decorrente da natureza das leis que têm uma abrangência territorial, aplicando-se a todos indistintamente, independente do seu grau cultural. Relevando essa circunstância, ainda assim achamos que é o melhor instrumento para julgar os crimes incluídos na órbita de sua atuação. Entretanto, se a sua virtude pode ser atribuída ao abrandamento e maior humanização na aplicação da lei, não podemos deixar de fazer duas observações. A primeira diz respeito a morosidade dos processos e seus reflexos negativos sobre o julgamento. Qual a média de tempo para o julgamento dos nossos processos? Quatro, cinco ou dez anos?

Exceções à parte, sabemos que a maioria comporta um período exagerado. Temos de convir que, se a exagerada brevidade do andamento e julgamento de um processo em plena ebulição, de revolta e o forte impacto das emoções, pode prejudicar sensivelmente o réu, a excessiva morosidade, indo ao encontro de um fato natural, dilui as emoções e apaga da memória as circunstâncias agravantes do delito, beneficiando-se injustamente. Isso, por certo, não aconteceria no julgamento pelo juiz singular e evitaria o descrédito da justiça, criando-se a impressão de que o crime compensa. A Segunda observação, fato corriqueiro nas pequenas comarcas, prende-se ao recurso exagerado da dramaticidade empregada pelas partes, especialmente pela fraca ou maliciosa defesa que, prevalecendo-se da ingenuidade do Corpo de Jurados, busca enredá-lo e convencê-lo tão-só pela emotividade. Concordamos plenamente com o uso desse artifício, legítimo, necessário e que dá toda beleza ao julgamento, quando acompanhado de uma inteligente persuasão presa à prova dos autos, mas que peca pelo ridículo quando, fugindo à argumentação ardilosa e sutil, procura convencer os jurados com um exagerado apelo sentimentalóide. Isso também não aconteceria no julgamento pelo juiz singular.

Assim, pelos senões ora citados e outros que possam existir e que não me ocorrem no momento, percebemos que os mesmos quase não dizem respeito à estrutura do Tribunal do Júri, mas a fatores de ordem humana ou de um mau funcionamento da máquina judiciária. Pecam, portanto, muitas críticas que lhe são assacadas, vez que não conseguem distinguir a origem das falhas. É o que ocorre, na mesma linha de raciocínio, com a crença ilusória de que a abstração das leis, por si só, possa ser eficaz sem o propósito de respeitá-las e pô-las em prática. É um grande engano. O homem aperfeiçoa as instituições e as leis e não o contrário. Em resumo, o que ora concluímos, achamos que o Tribunal do Júri, excluídas prováveis deficiências de ordem estrutural, é sem dúvida o melhor recurso para o julgamento dos crimes afetos à sua competência.

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  • aline Uau, excelente texto, parabéns. Artigo maravilhoso.